quarta-feira, 27 de maio de 2009

ARTE ESCRITA - FESTA NO PIAU - FRED MATOS

Foto: Marisa Vianna

UM POUQUINHO DE FRED MATOS

FRED MATOS nasceu em Salvador Ba. É poeta, contista e romancista, tem três livros publicados: EU MEU OUTRO, ANOMALIAS e MELHOR QUE A ENCOMENDA, e varias publicações em antologias, com o conto “Transe” ele foi premiado em 14° lugar do Concurso Nacional de Contos Luiz Vilela.
http://eumeuoutro.blogspot.com/ onde ele expõe sua arte.



FESTA NO PIAU


Dona Alzira, moça velha já beirando os 70 anos, ciosa na função de governanta da casa grande da fazenda do Dr. Paulo Albuquerque, mas já alquebrada pelos anos na dura labuta abraçada com fervor religioso para sofrear as jamais consumadas, mas ainda recorrentes paixões carnais, foi quem recrutou as mulheres para arrumar e enfeitar a casa para a fuzarca. Cristina, a mais bonita delas, chegou com o sol ainda nascendo. Pés no chão trajava gola e mangas puídas, um velho vestido de chita muito apertado, sobretudo nas ancas generosas, pois, como lamenta dona Josefa, “as roupas não crescem com as crianças”.
Paulo, solteirão por opção, aparenta dez anos menos que os 47 que tem. Cirurgião conceituado na Bahia aplica todo o tempo ocioso na fazenda comprada há quase 20 anos, quando, no inicio da carreira, medicava em Valença, sua cidade natal. É um homem que ama a natureza e prefere a convivência com as pessoas simples do lugar que entre os citadinos. Aos colegas se justifica dizendo que prefere ser o maior peixe em um lago pequeno do que um peixe pequeno em uma grande lagoa. No Piau, onde é a grande personagem, ninguém faz reparo nas mulheres que traz de Salvador para o gozo nas longas e frias madrugadas.
João comprou cuecas novas e, pela primeira vez, tirou da gaveta a calça Lee presenteada no Natal pelo padrinho. A camisa domingueira, de linho branco, foi herança do pai, o velho Honorato. O coitado, João marejou os olhos ao lembrar, morreu abraçado com a mulher, Cremilda, sua mãe, no capotamento, ano passado, de um pau-de-arara em romaria a Bom Jesus da Lapa. Filho único, ficou órfão aos 18 anos e toca sozinho o pequeno sítio. O sustento é garantido pela pouca farinha que consegue produzir e vender na feira. Dinheiro a mais, para os lavradores do lugar, só na safra do cravo, de dois em dois anos. Nessas ocasiões, pai e mãe ainda vivos, o apurado era depositado em uma caderneta de poupança na Caixa Econômica, em Valença, maior cidade da região. Sua primeira safra após a orfandade ainda é promessa nos frágeis arbustos. O intento do moço é, vendida a safra, sacar toda a Poupança e, junto com o apurado do ano, reformar o velho casebre e a casa de farinha, comprar uma bicicleta e casar com Cristina. Uma parte está reservada para a lua de mel: uma semana em Morro de São Paulo, paraíso tão próximo, mas onde foi apenas uma vez, levado pelos pais como presente de aniversário, em ano de boa safra.
Ah! Morro de São Paulo, de inesquecíveis lembranças. João, menino taludo, pedra nos peitos e primeiros fios de pentelho aflorando, completava 13 anos. Na praia mais próxima à antiga vila os pais fizeram pouso e ele, usufruindo a liberdade que só é dada às crianças criadas no interior, apressou-se em conhecer o que fosse possível até a hora marcada para voltar. Atraído para uma mangueira carregada de frutos maduros, transpôs a porteira de uma fazenda à beira-mar e lá foi premiado com a sorte de encontrar uma mulher estrangeira, dona da propriedade, que aliando experiência e paciência transmitiu-lhe as primeiras lições da difícil arte da satisfação da libido.
Dona Josefa passou goma no melhor vestido da filha. Na festa do Doutor Paulo todos usam suas melhores roupas mesmo sabendo que não são tão bonitas quanto as dos convidados que chegam de Valença e de Salvador. O doutor, ela matutava, “é um amor de pessoa. Tem o defeito de ser solteiro e mulherengo, trazendo diferentes amigas a cada final de semana, mas sempre respeitando as moças do Piau, além do mais, trata pobres e ricos da mesma forma: dançam todos no mesmo salão e comem dos mesmos petiscos. Muitas crianças da região lhe são dadas para batizar e aos afilhados presenteia no Natal e na data do aniversário. Até escola construiu na fazenda e conseguiu professora do Estado para dar as aulas”. Cristina pediu ao pai para comprar vestido novo, mas está tudo tão caro e os cravos ainda estão verdes no talo. O cacau, que nos bons tempos garantia o sustento, às vezes até algum luxo, já não tem bom preço e as árvores, atacadas de pragas, produzem muito pouco. Dona Josefa nunca tinha visto a filha tão excitada. Cristina, que completou 17 anos em junho, ainda não fala em casar e desdenha quando ela fala no assunto. A mãe só lhe notou algum interesse por homem, em um sábado de feira em Itabaina, quando cruzaram com o filho do finado Honorato. Não tardou em avisar que o pai não consentiria em namoro com o moço, apesar de afilhado do Doutor Paulo. Recebeu como resposta um “tá doida mãe?” E desocupou-se do caso.
Cristina é, no aspecto físico, um belo exemplo da miscigenação que produziu a raça brasileira. Dos indígenas herdou os cabelos pretos e lisos que escorrem, quando os tem soltos, até o meio das costas. São da raça branca as feições delicadas do rosto e os olhos castanhos claros, quase verdes. Dos negros tem, sobretudo, a bunda suculenta que requebra voluptuosa fazendo com que, à sua passagem, os homens paralisem a labuta para sonhar prazeres improváveis. A cor da pele, acobreada, resulta da mistura dessas três raças.
O cabelo preso em coque, ela estava de quatro, areando o piso do banheiro, a bunda balançando no ritmo do vaivém do braço, quando Paulo entrou e trancou a porta. Ficou pálida, mas não disse palavra. Ele tirou a roupa, exibindo o pau, já duro. Ela tentou sair, mas foi abraçada pelo médico que, desinibido, desabotoou os seus trapos enquanto passava a língua pelo seu ouvido. Cristina, transida de desejo, voz sussurrante, pretextou sua condição de virgem e disse de João e dos planos que tinham. Paulo tranqüilizou-a garantindo o casamento com o afilhado: “Se você não contar, ele nunca vai saber”, ele prometeu.
Naquele exato momento, na roça de mandioca, João extraia as raízes da terra sonhando com a consumação do ato sexual que unirá o seu destino ao de Cristina. Pensava, com boa razão, que, em conseqüência, seu Ramalho, pai de amada, nada poderia objetar para impedir o casamento. Mesmo a velha rixa do pai da noiva com o finado Honorato, resultado de disputa por mulher quando eram moços, seria finalmente esquecida. Imaginou seu pênis penetrando Cristina, que até então só lhe havia permitido botar nas coxas e que, uma única vez, havia concordado em chupar seu pau, o que fez com lamentável imperícia. João lembrou-se da italiana do Morro de São Paulo lambendo-lhe cada milímetro de sua glande e bebendo ávida o suco branco e quente que ejaculara abundante. Não podendo conter-se se masturbou idealizando estar sodomizando a namorada.
Usando da delicadeza possível em circunstância como aquela Paulo havia rompido o hímen de Cristina sem que ela chegasse ao gozo. O médico explicou-lhe que era assim na primeira vez, mas que ela não ficaria decepcionada, esperasse um pouco até que ele estivesse refeito do esforço. Estavam deitados em uma enorme banheira - esse útil aparelho sanitário aposentado pela moderna arquitetura -, imersos em água morna, quando o médico foi chamado pela rapariga que ele tinha trazido de Salvador. Ele deixou entrar, para constrangimento da matuta, uma escultura loura com não mais que 20 anos. A intrusa deixou cair o roupão revelando atributos de beleza que Cristina nem sonhava ser possível existir. Sem que nenhuma palavra tenha sido dita, a loura deitou-se ao lado da roceira tocando-a com uma ciência que poucos homens conquistam. Paulo juntou-se a elas e foi então que Cristina experimentou o seu primeiro orgasmo, com a loura lambendo-lhe o clitóris.
João, o sol ainda a pino, voltou cedo da roça, descarregou a mandioca na casa de farinha, desarreou o burro e desceu a ribanceira até o riacho, divisa da sua pequena propriedade com a fazenda do padrinho. Há muito o rapaz não se empenhava tanto no asseio: festa na casa do Doutor é o melhor programa da região banhada pelo rio Piau e, principalmente, porque Cristina fora enfim convencida a se fazer mulher e que, com todos entretidos na festa, oportunidade melhor não poderia haver para a consumação do ato.
Refeitos do gozo, Paulo inteirou-se com Cristina dos detalhes do plano de João. O afilhado tinha combinado com a namorada esperá-la, às 22 horas, auge da festa, quando ninguém daria pelas suas ausências, no pequeno quarto onde o médico guardava selas e arreios dos animais. O médico instruiu a moça a proceder conforme queria João e mais uma vez garantiu que tudo iria dar certo. Cristina voltou para casa após o almoço vivenciando humores ciclotímicos. Em alguns momentos tomava-se de pavor imaginando estar estampado no seu rosto o acontecido pela manhã. Em poucos minutos estava sorrindo, convencida pelas promessas de Paulo e ansiosa para que se repetisse o prazer nunca antes gozado.
Logo no inicio do baile, o médico convidou o afilhado a acompanhá-lo em umas doses de uísque. O rapaz, que não podia acercar-se da namorada na presença dos pais e irmãos da moça, aceitou com prazer e orgulho a especial deferência. A João preocupava apenas o ficar de olho no relógio enquanto Paulo entretinha-o falando das novidades tecnológicas das grandes cidades do mundo. Na hora aprazada para o encontro o rapaz estava completamente bêbado e foi aconselhado pelo padrinho a tirar uma soneca: “use o quarto dos arreios, se precisar pode ficar até amanhã”. O médico saiu para o salão e João, trôpego e ofegante foi esperar Cristina.
No salão o baile corria solto, Paulo com licença de seu Ramalho, tirou Cristina para dançar e sussurrando instruiu-a a ir ter com o namorado. Avisou-a que provavelmente o encontraria dormindo e que, se assim fosse, que o despisse completamente e que nua o tomasse nos braços. Finda a dança, Paulo acercou-se do pai da rapariga com quem puxou conversa sobre coisas da lavoura, sobretudo quanto à necessidade da erradicação dos cacauais infectados pela “vassoura-de-bruxa”. Conversa vai, conversa vem, convidou Ramalho para ver a sela nova que havia comprado em recente viagem aos Estados Unidos: “coisa do outro mundo seu Ramalho, o senhor vai ficar de queixo caído com o que vai ver”.
No quarto, como havia previsto o médico, Cristina encontrou o namorado dormindo sobre um leito improvisado com as peles e panos que são usados para que os animais não sejam feridos pelas selas e procedeu como instruída pelo médico. Quando acabou de tirar a roupa de João, ela também nua em pêlo, João despertou e sonolento tomou-a nos braços. Vencendo o torpor causado pelo álcool, graças à sua juventude e ao enorme desejo acumulado desde quando a conhecera, João penetrava Cristina, sem se dar conta de não encontrar a resistência esperada de um hímen intacto, no exato momento em que, aberta a porta e acesa a luz, entravam Paulo e o pai da moça.
A reação violenta do velho Ramalho foi contida pelo médico com grande esforço físico. Estivesse o velho armado e a festa de aniversário de Paulo teria se transformado em palco de uma tragédia. Dominado, porém, o inicial impulso homicida, Ramalho foi acometido de grande lassidão, logo aproveitada por Paulo para acomodar a situação conforme sua própria conveniência. Pretextando sentir-se culpado pelo acontecido se ter dado em sua casa e por obra de afilhado seu, prometeu que tudo faria, inclusive financeiramente, para a felicidade do jovem casal. Pensando em seu deleite comunicou que já era tempo de aposentar a velha governanta e que seu lugar poderia ser ocupado por Cristina, moça prendada e trabalhadora, se a isso não houvesse objeção do pai ou do futuro marido. Que eles ficassem tranqüilos, pois sabiam que, apesar de homem solteiro, “sempre respeitei e sempre respeitarei todas as moças do meu querido Piau”.