segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

ILUMINAÇÂO



SEXO e MORTE



Para além do meramente político – e já no campo ético, metafísico e religioso –, meu personagem Quaderna, O Decifrador, é deformado, entre outras coisas, pela visão torcida doentiamente e exacerbada do Sexo, pela violência da revolução, pelo opressivo e sufocante terror do Estado e pela corrupção moral ligada ao dinheiro. A sociedade do século XX deifica três ídolos: Falo, Moloc e Mamon e as marcas de suas deformações e dessa idolatria são perfeitamente visíveis em Quaderna.

Em minha visão-do-mundo, O Sexo não é apenas, como costumam dizer os superficiais, um fato “normal e saudável”. Muito mais do que isso, o Sexo é a situação extrema, o êxtase, a crispação do Amor, do carinho e da ensonação amorosa,motivo pelo qual atinge a fronteira do Sagrado e da Beleza, a fronteira de Deus. Os antigos diziam que a Morte é o toque de um Deus no homem. É como se, ao entrar em contato direto com a Divindade, a natureza humana não suportasse esse terrível fato e sucumbisse aos estremeços orgiásticos da Morte, fêmea e amantes para os homens, macho e amante para as mulheres, materna, paterna e terrível para todos. Daí a ligação, sempre ressaltada também, entre o êxtase da morte, a fruição da beleza e o êxtase mortal do Amor, inclusive sexual. É isso o que, sob a forma poética do Mito, Quaderna procura dizer em o Rei Degolado, a respeito da Morte Caetana: “Quando ela, sob forma de fêmea, escolhe um homem para matar, aparece a ele entre delírios e prodígios e exibe-lhe agressivamente seu peitos. O homem fascinado beija-os, e, ao mesmo tempo em que os morde, é picado pela cobra-coral que serve de colar para a Moça Caetana. È então que o homem é fulminado nos estrtemeços obscenos da morte.” Depois , explicando a origem do homem pela união de deuses com animais, Quaderna diz sobre a morte, a Onça Caetana: “Do sangue de todos os homens-machos que nascem, ela faz se apossar um de seus Gaviões, e do sangue das mulheres-fêmeas a cobra-coral Vermera. É por isso que toda mulher, quando goza ou quando entra em agonia, se contorce como uma serpente. È por isso que todo homem, quando goza ou quando morre, estremece todo, cerrando os dentes e, logo depois, abrindo e fechando a boca, no feio e sagrado espasmo do Gavião profundamente ferido. E, finalmente, é por isso que todos os homens, e todos os filhos dos homens, são também filhos da Morte, nenhum deles escapando a suas garras maternais e cruéis.”

Assim, não é somente a Morte: o estremeço do amor e do Sexo, o choque violento da beleza e da Arte, e também naturalmente o abalo, o êxtase terrificante, fascinador e final da Morte, tudo isso são toques de Deus no homem, assim como a Arte e o Sexo são, no homem, expressões de revolta contra a Morte e afirmação de uma momentânea e precária, mas ainda assim vital e poderosa imortalidade. É por isso que nunca estranhei que a linguagem através da qual Santa Teresa de Ávila descreve seu êxtase religioso seja povoada de signos e insígnias ligadas ao Amor e ao estremeço sexual, assim como acontece também com a linguagem da Arte e da literatura. Quando me insurjo contra a comercialização e a vulgarização do Sexos, contra a massificação da Arte e contra a escamoteação da Morte, efetivadas, numa sistematização cuidadosamente programada, pela sociedade contemporânea, não é por puritanismo, atitude que seria ainda mais inaceitável no homem que sou- mas sim exatamente por respeito à nossa busca da Beleza pela Arte, do Amor pelo Sexo, da morte como fonte de Vida, os três ásperos e belos caminhos através dos quais o homem-mortal as vezes experimenta ainda neste mundo escuro, o toque da Divindade imortal.

Ariano Suassuna, do livro Almanaque Armorial

www.arianosuassuna.com.br