sexta-feira, 3 de setembro de 2010

ENTREVISTA COM O LAMA PADMA SAMTEN NO JORNAL "A TARDE"


No dia 1º de novembro o Lama Padma Samten concedeu uma entrevista à revista Muito, seção Abre Aspas, do Jornal A Tarde, de Salvador.


O Lama comentou sobre diversos temas, principalmente falou sobre sua vida pessoal, sobre sua relação com a física e sobre o budismo no Brasil.

Lei a entrevista completa:

“A sala de reuniões do pequeno apart-hotel da Barra estava cheia, apesar do solzão que fazia lá fora, naquele sábado típico de outubro em Salvador. Em torno de um altar, um grupo de pessoas recebia ensinamentos do primeiro sacerdote budista brasileiro. Gaúcho de Porto Alegre, Alfredo Aveline, 60, há 13 foi ordenado lama da linhagem Ningmapa por seu mestre, Chagdud Tulku Rinpoche, de quem recebeu o nome Padma Samten, que significa algo como Meditação do Lótus.

O lama nos recebeu no intervalo de almoço, ainda usando a tchuba vermelho-ruby, cor que no budismo simboliza a compaixão. “Queres respostas longas ou curtas?”, pergunta sorrindo, demonstrando intimidade com o processo. Convidado pela Rede Globo e pelo Canal Futura para participar do programa Sagrado, Padma Samten vem ganhando visibilidade na mídia graças à gestão atuante no Centro de Estudos Budistas Bodisatva (Cebb), sediado em Viamão (RS), e representado em 30 cidades no Brasil, Uruguai e Canadá.

Mestre em física quântica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde ensinou por 25 anos, ativista ambiental e ferrenho militante contra a instalação de energia nuclear no Brasil, ele largou tudo para seguir seu mestre. Mas voltou. O budismo tornara o ambientalista destemido e o cientista “limitado” um homem mais inteiro.

Como o senhor chegou ao budismo?

Quando adolescente, tive um contato com a ioga e, mais adiante, através de um amigo, encontrei o budismo, mas dentro da perspectiva do caminho do ouvinte, que vai narrar sobre o sofrimento como se o sofrimento fosse o móvel principal para nós seguirmos o caminho espiritual. Então, isso não me interessou muito.

Por quê?

Achei que as noções do apego e do sofrimento eram importantes, porém menos relevantes do que aquilo que me conectava com o caminho espiritual. Era como se eu já tivesse um caminho espiritual com várias leituras, principalmente da ioga. Dentro disso, eu estava olhando uma motivação mais elevada, de encontrar a natureza primordial, de encontrar a compreensão da realidade, as coisas transcendentes, logo, ultrapassar o sofrimento me parecia uma coisa muito terrena e eu buscava uma espiritualidade mais mística.


Depois, tive um contato com o hinduísmo e fiz uma compreensão interna do Baghavad-Gita, através da qual vi uma descrição do próprio processo de operação da mente e achei aquilo muito interessante. Mais adiante, percebi que não havia ali métodos de investigar mais profundamente esse mundo interno. Foi quando entrei em contato com alguns textos budistas, essencialmente o Surangama Sutra, que examina a operação da mente, então aquilo me tocou muito. Pensei que deveria estudar prioritariamente esse tema e que os demais temas de minha vida ganhariam muito significado se eu pudesse entender melhor como a mente opera.

O senhor mergulhou nisso?

Sim. Foi um período em que fiquei dois anos distante do meu trabalho. Pedi licença da universidade. Essa saída vinha dentro da perspectiva ecológica, quando resolvi morar em uma comunidade. Eu queria experimentar esses valores da ecologia e da vida comunitária. Saí da universidade, pensando que não voltaria, mas retornei dois anos depois. O que o fez voltar? Em parte, a ciência me interessava também. Fiquei mais dez anos na universidade.

Como um mestre em física quântica processou os ensinamentos do budismo?

O budismo é muito hábil porque introduz o exame detalhado do mundo interno do cientista como um tema relevante da própria ação de fazer ciência. Esse mundo interno do cientista, por um lado, é o que lhe permite pensar e criar, mas, por outro lado, termina por criar um ambiente onde o cientista só consegue ver algumas coisas. Limita a visão.

Houve uma complementação. Com certeza. Também os cientistas estão presos àquilo que no budismo é chamado de ignorância. Eles só conseguem ver através do filtro de suas próprias teorias vigentes. O que eles pensam que sabem, e se apegam, dificulta a visão do novo, daquilo que eles ainda não veem.


Olhando para si, no passado, o senhor se consideraria um físico ignorante?

Com certeza. Como um cientista que tinha uma limitação de visão. Uma limitação que vem das próprias teorias. Essa compreensão crítica está na própria física quântica. Só que sem um aprofundamento. O budismo foi impactante em sua vida? Minha vida se tornou muito diferente. Eu era um funcionário da universidade, um professor, mas, mesmo antes do budismo, um professor não muito semelhante aos outros.

Como assim?

Eu me engajei ativamente em coisas que na época (anos 70) eram pouco divulgadas, como energia solar. Fui um dos criadores do grupo de energia solar da UFRS. E fui uma das pessoas que escreveu o primeiro texto acadêmico contra a instalação de energia nuclear no Brasil. Tornei-me atuante na Sociedade Brasileira de Física e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência na questão ambiental e nuclear.


Era jovem nessa época, tinha 25 anos. Então, seus anseios ambientais também encontraram ressonância no budismo? Percebi que os problemas ambientais eram motivados pelos aspectos psicológicos das pessoas e não por aspectos externos ou técnicos que obrigassem à destruição da natureza e uso de tecnologias agressivas.

Qual sua visão do planeta e dessa humanidade que chegou ao século 21?

De uma forma intuitiva, eu diria que estamos vivendo desafios como nunca vivemos, mas, por outro lado, o número de pessoas lúcidas capazes de fazer transformações é muito grande. Hoje, acredito que não precisamos convencer as pessoas a serem ecologistas. Elas já estão sabendo disso. A questão é que consigam dar o testemunho em suas vidas.

Em suas palestras, o senhor faz um link entre os ensinamentos do Buda e temas cotidianos. Esta também é a proposta do programa Sagrado. Como o senhor reagiu ao convite da Globo? O budismo está se popularizando?

Acredito que sim. Fiquei feliz, porque entre as várias tradições religiosas no Brasil agora também se conecta o budismo. Eles chamaram os católicos, os islâmicos, os evangélicos, os judeus, os das tradições africanas e também os budistas. Eles nos convidam a falar sobre temas do cotidiano e não propriamente sobre religião. Falo como o budismo vê a violência nas cidades e a solidariedade. São temas humanos.

E os temas das palestras do Cebb?

Temos uma estrutura de ensinamentos que é gerada pelo próprio Buda. O Cebb transforma isso em alguma coisa que as pessoas entendam em suas vidas. Acho que essa é a razão do sucesso do centro. Os temas são colocados dentro das circunstâncias desafiadoras da vida.

O senhor planejou se tornar um lama?

Não planejei. Foi decisão do meu mestre, e ele não me consultou. Simplesmente me ordenou lama.

Foi um comunicado?

Rinpoche me chamou por telefone e disse: ‘Vou ordená-lo lama’. Um ano antes, Chagdud Khadro, esposa dele, me disse que iria me dar uma ordenação, mas eu não tinha a menor ideia do que iria ser. Não tinha nenhuma aspiração, mas minha ação, de certo modo, já representava isso. Hoje, quando vejo o que fazia (dirigia grupos, viajava para levar os ensinamentos a diferentes lugares), acho que me portava como propagador dos ensinamentos.

O senhor é o primeiro lama ordenado no Brasil?

Na verdade, o primeiro lama brasileiro ou o primeiro lama gaúcho (risos). Não sei se algum brasileiro havia sido ordenado antes, mas, quanto à ordenação dos lamas, nenhum tinha sido ordenado no Brasil.

Um homem em sua busca espiritual é motivo de envaidecimento?

Para mim foi motivo de preocupação. Porque eu não me achava capaz de ser um lama, não via as qualidades em mim, não me via à altura de expectativas tão elevadas, e isso me trouxe uma preocupação adicional. Eu gostava de chegar aos lugares sem ter que usar esta roupa (a thuba) nem precisar representar uma tradição.

Eu gostava de falar dos valores espirituais sem a necessidade de introduzir um aspecto confessional. Para mim, foi um desafio a mais chegar a cada lugar e me manifestar desse modo. Entendi isso como um ensinamento do meu mestre, uma manifestação forte, um desafio que me conduziria a crescer sempre mais e a trazer benefícios aos outros seres. Senti o peso, mas confiei na visão do mestre.

Como o senhor reagiu à ordenação?

Eu simplesmente segui. Fui procurando como entender melhor e como trazer benefício para as pessoas; estudar melhor; entender melhor a mente do meu mestre para que eu pudesse trazer benefícios de uma forma mais apropriada.

Como é a rotina de um lama?

Quando estou no período de retiro, que considero um período muito mágico, muito maravilhoso, então a rotina é a seguinte: a primeira prática começa às 4h30, então levantamos todos (eu e os alunos) um pouco antes. Isso segue até as 8h. Depois, uma hora de prática de ioga, e seguem ensinamentos até o meio-dia. À tarde, minha prática individual até 17h, depois mais atividade física. À noite, novo encontro com o grupo.

E num dia comum sem agenda?

Não tenho um dia sem agenda. Até 31 de dezembro, 12 atividades em cinco Estados do País… Tenho conduzido grupos pelo skype também. Um em Montevidéu, outro no Canadá. Utilizo os meios eletrônicos para dirigir as atividades deles. Às vezes estou realizando atividades em uma cidade e, através da internet, conduzo outras.

E sua vida pessoal?

Minha vida pessoal é minha atividade do Darma. Me alegro muito em estar em meio aos grupos e os vejo como uma ampla família que cuido da forma mais detalhada e próxima possível. Apenas lastimo não poder cuidá-los melhor.

O seu lazer é igual ao de todo mundo? Vai ao cinema, à praia, futebol?

Meu lazer diz respeito à busca de preservar a saúde. Incluo a prática de atividade física e ioga como os pontos principais, ainda que não faça na forma como seria verdadeiramente necessário. Tenho procurado usar a bicicleta sempre que possível para me movimentar.

E a vida familiar? O senhor já se casou algumas vezes. Quantos filhos tem?

A intensidade da vida, as etapas bem marcadas por mudanças estruturais, a ação pública e a ampla disponibilidade trazem desafios constantes às relações familiares. Foram três casamentos anteriores e o atual tem nove anos. Destas relações nasceram cinco filhos.
Eles o seguiram no budismo?

A mais velha se interessou por ecologia; o segundo é advogado e se tornou um dos dirigentes do Cebb e do Instituto Caminho do Meio. Tenho ainda uma filha de 16 que tem uma compreensão do Darma do Buda. Acho que os dois menores não têm como escapar (risos): o de 3 anos já estuda em escola budista e faz ioga. Tenho ainda três netos. Todos lindos e luminosos!


Qual sua aspiração?

Com relação a quê?

A tudo, a todos.

Se as pessoas se derem conta da realidade como efetivamente é, então agirão de forma positiva, e o mundo e as circunstâncias serão muito favoráveis. Às grandes empresas e aos gestores que me convidam, eu tenho dito: “Acorde, o tempo agora mudou. Houve uma época em que destruir a natureza e maltratar as pessoas dava lucro. Esse tempo agora passou. É hora de vocês se ajustarem à visão de mundo que hoje está na aspiração da mente de todas as pessoas, que é a visão que aspira a paz e o equilíbrio do ambiente”.

As pessoas individualmente e as organizações precisarão ajustar sua visão e ação. Estamos num tempo em que o céu está se movendo. Todos precisarão adotar valores positivos. Uma grande parcela das pessoas acordou neste tempo da informação ampla e redes de ação e de relações. Os valores negativos não estão mais produzindo resultados como antes. Mesmo os que se definem como competitivos, descrentes e maldosos estão sendo pressionados a redefinir sua imagem pública e sua ação. Minha aspiração é o reconhecimento amplo da realidade da terra pura, da cultura de paz.”

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